O diário de uma menina esperta descortina um painel sobre as transformações que aconteceram no Brasil na passagem para o século XX. Uma prosa deliciosa e cativante.
Aclamado por escritores como Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa, Minha vida de menina é o diário de uma garota de província do final do século XIX. Publicado pela primeira vez em 1942, antecipa a voga das histórias do cotidiano e dos relatos confessionais de adolescentes ao traçar um retrato bem-humorado da vida em Diamantina entre 1893 e 1895.
Da estagnação econômica ao surgimento de inúmeras modalidades de trabalho entre a escravidão e o regime salarial, Helena Morley compõe um painel multicolorido, desabusado e inconformista de um momento histórico singular no Brasil. De lambuja, o leitor é apresentado às inquietações de uma jovem espevitada às vésperas de um novo século.
19/10/2020
Helena Morley começou a escrever Minha Vida de Menina quando tinha apenas 13 anos. Isso não significa que ela seja um prodígio da literatura: O livro nada mais é do que um diário adolescente sobre a vida na província. Ao mesmo tempo, é uma leitura saborosa sobre um momento histórico relevante.
Escrito entre 1893 e 1895, o diário de Morley, pseudônimo de Alice Caldeira Brant, retrata as relações sociais e econômicas em um Brasil afastado das grandes metrópoles e ainda muito marcado pela escravidão, abolida há menos de uma década.
As vezes, a autora se limitava a relatar acontecimentos de forma direta, sem emitir opiniões ou julgamentos, apenas transpondo para o diário o cotidiano.


As vezes, a autora se limitava a relatar acontecimentos de forma direta, sem emitir opiniões ou julgamentos, apenas transpondo para o diário o cotidiano.
Helena Morley, apesar da pouca idade, era uma observadora atenta do seu entorno. Filha de mãe brasileira e pais inglês, ela conta, de forma sucinta e bem-humorada, conservando a ingenuidade e o espírito rebelde da adolescência, a relação com os pais, os tios e a avó. Descreve através de sua perspectiva de adolescente, a decadência da mineração, a pobreza da família, a vida na escola e os hábitos provincianos de Diamantina, em Minas Gerais, cidade onde nasceu.
Como qualquer diário, a passagem do tempo também fica evidente, e nos leva a algumas curiosidades, como o fato de que somente os homens portavam relógios.
Como qualquer diário, a passagem do tempo também fica evidente, e nos leva a algumas curiosidades, como o fato de que somente os homens portavam relógios.
A família de sua mãe era extremamente católica e sua mãe fazia Helena rezar junto com ela quase o tempo todo, embora seu pai, descendente de ingleses, se abster-se dessa convicção. Sem falar muito sobre política, escreveu certa vez, a respeito da eleição de Prudente de Morais para a presidência. Enquanto o pai comemorava, ela via o acontecimento com ceticismo.

Ainda que o cotidiano relatado tenha mais de 100 anos, é um sopro de frescor e jovialidade.
Alice/ Helena acabou convencida pelas netas a publicar o livro, ainda que não acreditasse que as memórias de uma menina de uma cidade do interior - sem luz elétrica, água canalizada, telefone, nem mesmo padaria - pudessem interessar a alguém tantas décadas depois.
A obra é narrada em primeira pessoa, apresentando uma narradora/personagem que mostra a sua visão dos acontecimentos no cotidiano de Diamantina. A autora narra sobre festas populares, superstições, coisas de parentes, comidas e bebidas típicas... a escravidão, o convívio familiar, as esperanças futuras. Tudo organizado em uma sequência cronológica, apesar de muitos eventos não terem relação entre si.
Helena relatou em simples palavras que muitos negros libertos continuavam na posição de escravos porque não tinham outra condição de sobrevivência. E que sua avó mantinha negros em sua propriedade e os ajudava, mas que a sociedade ainda os menosprezavam.
Alguns nomes de parentes e conhecidos foram trocados por pseudônimos para evitar desentendimento com os envolvidos nos fatos narrados. Assim, seu pai Felisberto, na obra chamado-se Alexandre e sua mãe Alexandrina, é chamada de Carolina.
A obra, apesar de escrita no final do século 19, só foi publicada em 1942, quando a autora manifestou o desejo de deixar para os familiares os relatos de sua infância e as diferenças entre a vida simples que ela teve enquanto garota comparada a de suas netas. Após a publicação, o livro tornou-se um importante registro social histórico de uma época.
Capa - Primeira edição, 1942
Os acontecimentos tem como pano de fundo o Brasil entre os anos 1893 e 1985. Acabava de ocorrer a abolição da escravatura e a Proclamação da República era um fato recente. Helena mostra ser um momento de mudança tanto pessoal quanto nacional.
Assim, é possível verificar em sua escrita a presença de experiências e reflexões sobre a constituição social da época, apresentando o patriarcalismo escravocrata, as regras estabelecidas pela escola e a igreja, como as relações de trabalho se estabeleciam, a exclusão econômica ...
Os fatos são narrados, na época caracterizada pelo declínio do diamante e limitou-se a cidade de Diamantina, Minas Gerais, em fins do século XIX, local onde a autora nasceu e viveu. É, portanto, um espaço que mistura a vida urbana/mineração e a vida familiar, fazendo reflexões desde os conselhos dados pelo pai até as relações sociais, o que mostra o seu processo de constituição feminina.
Trecho do livro:
21 de janeiro
"Quando eu tenho inveja da sorte dos outros, mamãe e vovó dizem: "Deus sabe a quem dá sorte". Na Boa Vista agora é que eu acabei de crer. Já disse a vovó que ela quase nunca erra, quando fala as coisas. Nós todos, os meninos e meninas da Boa Vista, depois que acabamos de jantar e que meu pai e tio Joãozinho despacham os trabalhadores, a coisa que mais gostamos é ficar descalços, com o pé no molhado, subindo e descendo o desbarranque da lavra, procurando diamantinhos e folhetas de ouro, pois tudo meu tio compra. Diamante é raro achar, mas folhetas de ouro a gente encontra sempre...”
Capa - Segunda edição, 1969
Helena aparece como a própria autora e personagem protagonista de sua obra e traz uma retomada muito próxima dos acontecimentos vividos durante a sua infância. Ela nos revela que o início de seu diário surgiu de um conselho de seu pai para que escrevesse o que lhe ocorria, ao invés de compartilhar com as amigas. Ela mostra, inicialmente, uma insatisfação ao seguir tal conselho, mas, posteriormente, ao viver decepções com quem compartilhava suas experiências, começa a dar razão ao pai.
Dessa perspectiva é possível observar uma personagem observadora e crítica de sua realidade, mostrando, muita vezes, uma visão inconformada dos fatos que circundam sua vida familiar.
Há um processo de crescimento e amadurecimento da personagem, que é influenciado tanto por fatores internos - reflexões, sentimentos, posicionamento crítico - quanto fatores externos - imposições e regras da Igreja e da escola - que a obrigou a encarar os desafios da vida adulta e a assumir as responsabilidades de sua forma de ser e pensar.
De caráter inovador, já que, ao pensar sobre seu contexto, Helena propunha-se agir para modificá-lo, ela é vista muitas vezes como alguém que está além de seu tempo, pois ironiza, critica e se sente inconformada com o que lhe ocorria e estava a sua volta. O leitor vai participar da sua evolução e atuação como cidadã no mundo.
Capa - Terceira edição, 1998
O livro apresenta fatos cotidianos muito próximos do momento que ocorreram - é uma reconstituição de experiências do dia a dia da narradora. Assim, esses fatos muitas vezes não possuíam relação entre si e podiam, inclusive, ficar inacabados. Mostrando uma narrativa que se aproxima mais do momento presente da ação.
O diário é o interlocutor do narrador-personagem, mostrando sua existência e confidência. O livro possuiu, como princípio da escrita, uma data típica dos cadernos de anotações, por isso, a narrativa mostrou uma maior precisão e fidelidade no registro dos fatos.
O momento histórico deve ser considerado importante para os leitores, na compreensão da obra, pois mostra o funcionamento da sociedade da época e retrata os preconceitos de raça e classe no pós-abolição. Outro tema interessante é a questão das desigualdades sociais. Na obra há muitas questões com temas ligados a História e a Sociologia.
“ 'Minha Vida De Menina' é um verdadeiro relato da infância."
- Guimarães Rosa
A autora não é uma historiadora, filósofa ou socióloga, é uma menina com olhos mais isentos que tece comentários apenas sobre o que vê. A Helena é uma menina pobre, mas seus avós e tios têm muito dinheiro. Ela convive com negros e brancos, pobres e ricos, então tem uma visão da sociedade brasileira bastante privilegiada.
Aclamado à época de sua publicação, inclusive por nomes como Carlos Drummond de Andrade, o livro permanece um clássico, fazendo parte da lista obrigatória do vestibular da banca Fuvest - Fundação Universitária para o Vestibular - que seleciona alunos para a Universidade de São Paulo (USP).
Quem é HELENA MORLEY?
Na verdade ela se chama Alice Dayrell Caldeira Brant, sendo Helena apenas o seu pseudônimo.
Ela nasceu em 1880 em Minas Gerais, na cidade de Diamantina e escreveu um diário entre os anos 1893 e 1895, quando era menina. Neste período temos a descrição de seus 13, 14 e 15 anos de vida.
A jovem começou a escrever por incentivo paterno e seguiu com o hábito por exigências de seu professor de português. Helena desenvolveu uma consciência crítica sobre os acontecimentos ao seu redor, refletindo sobre algumas questões como o papel dos negros e o das mulheres na sociedade.
Alice estudou na Escola Normal e casou-se, em 1900, com Augusto Mario Caldeira Brant, com quem teve seis filhos. Aos 62 anos ela resolveu resgatar suas memórias para contar aos netos, afinal ela teve 6 filhos.
Assim surgiu o livro Minha Vida de Menina.
Alice foi escritora de uma única obra, já traduzida para o francês, italiano e Inglês, esta última feita pela americana Elizabeth Bishop, considerada uma das mais importantes poetisas do século XX, que a traduziu para a língua inglesa, por ter ficando bastante envolvida com a obra. O livro traduzido foi publicado em 1957.
Alice morreu em 1970, no Rio de Janeiro.
A obra teve uma repercussão significativa, conseguindo a atenção e a reflexão de importantes escritores, como Raquel de Queiróz, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros.
Aliás! Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa consideravam este livro como um clássico!
O livro também foi adaptado, em 2003, para as telas de cinema e ganhou vários prêmios, inclusive seis Kikitos, no Festival de Gramado. O filme dirigido por Helena Solberg, estrelou com a atriz Ludmila Dayer no papel de Helena Morley.
Quer saber mais?
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Minha Vida De Menina é uma leitura agradável, com episódios que nos fazem rir e relembrar as rebeldias da adolescência. Trazendo um retrato importante de um período de grandes mudanças para o país, com o fim da escravidão e o início da República.
Biografia | 328 Páginas| Editora Companhia de Bolso*
Minha Vida De Menina
Helena Morley
Ano 2016

* Selo: Companhia De Bolso. Editora parceira: Grupo Companhia Das Letras