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[RESENHA] A Ocupação

A ocupação de um prédio no centro de São Paulo, um pai fragilizado pela doença e a perspectiva da própria paternidade estão no cerne deste romance que fala, sobretudo, de perda e de resiliência.

Depois do romance A resistência, vencedor de prêmios tão prestigiosos quanto Jabuti e Saramago, e elogiado pela crítica brasileira e internacional, Julián Fuks retorna a seu personagem alter ego Sebastián em A Ocupação.

Construída em capítulos breves, a narrativa se alterna entre os encontros do escritor com alguns moradores de um edifício ocupado no centro de São Paulo ― e as histórias que lhe contam ―, o temor da perda do pai hospitalizado e as expectativas em torno da gravidez de sua mulher e de uma possível paternidade. Com uma prosa impecável, o escritor paulistano nos enreda nessas diversas formas de ocupação, que revelam a fragilidade da vida, o risco da solidão e as muitas brutalidades em que o presente nos imerge.

15/06/2020


Um dos grandes nomes da literatura brasileira, o premiado Julián Fuks lançou no início de dezembro de 2019, o seu novo livro chamado A Ocupação.

A história tem como pano de fundo um prédio ocupado na capital paulista. A narrativa nos fala sobre a capacidade humana de resiliência e de lidar com a perda. Quem conta essa história é Sebastián, um alter ego do escritor que conversa com as pessoas que foram viver no edifício abandonado. Em paralelo, Sebastián enfrenta na sua vida pessoal questões densas como a doença do pai e a eminência de ser pai.

A trama alterna questões políticas e da esfera pública com momentos íntimos de hesitação pessoal.



"Ocupar era o imperativo de todos eles, ocupar as praças, as ruas, os prédios vazios, povoá-los com seus corpos ainda firmes, com sua vida incoctível. Ocupar era uma urgência dos corpos, convertida no mais contundente dos atos políticos, a afrontar a resignação dos serenos".



Sebastián costura uma linha entre a literatura política e reflexões extremamente pessoais. Neste cenário, duas ocupações (reais) em São Paulo, que o autor frequentou enquanto escrevia a obra. 

Além da latência desse “embate”, entre intelectual e o povo sem moradia, o livro também descreve lutas internas do narrador (Sebastián), como o relacionamento com o pai internado com problemas de saúde, em um hospital e da expectativa de conceber um filho com a mulher.

Mia Couto “aparece” como um personagem no livro, bem como diversos moradores das ocupações que o escritor visitou, compartilhando histórias pungentes sobre as condições sociais que enfrentam no dia a dia. O escritor moçambicano escreve uma carta admoestando o jovem colega a não se livrar das reflexões políticas, e que a “literatura deve afirmar sua própria soberania”. 

Escrevendo um livro com essa proposta, confrontando o narrador com pessoas em situação tão diferente da dele, era impossível que essa questão não estivesse presente, latente por toda parte. Não me parece razoável buscar uma solução conciliadora! A trama não busca a fusão, mas a afinidade, a aproximação, a empatia, para aquela situação e os seus envolvidos.

O autor descreve as experiências de conviver com os moradores da ocupação e, também, de ter participado de uma "festa" - simbolicamente falando, quando os sem-teto executam as ocupações em prédios abandonados - No meio daquelas pessoas que não podiam senão lutar, que não tinham direito sequer ao desânimo, acabou sendo a um só tempo uma tomada de consciência e uma injeção de ânimo. A mudança desejável ao mundo é eternamente urgente. 

A luta não pode esperar por tempos melhores, deve ser travada dia a dia, em cada detalhe, em cada esquina.

O livro é como um discurso sobre o mundo, com pessoas que participam do mundo, discutem, intervém... A obra segue o gênero da Literatura Política, mas sem ser dogmática.

O pai do personagem narrador é psicanalista - A psicanálise marca a vida de Sebastián numa dimensão muito pessoal, nas discussões familiares, numa certa visão transmitida em conversas ao longo dos diálogos. A compreensão de que a palavra, se não muda necessariamente o mundo externo, transforma da maneira mais intensa e profunda aquele que a profere.

Em um trecho de uma conversa do narrador com o personagem Najati, ele fala que:

-  "somos todos parte de uma família",

 E depois leva em conta que: "toda violência contra o outro é uma violência contra nós mesmos"

Quando não conhecemos o outro, quando não o compreendemos, é que nos tornamos capazes da violência mais extrema. Assim têm sido tratados os movimentos sociais, com crescente incompreensão e truculência. Essa reflexão é bastante positiva! 


“A conjuntura é de retrocesso, de repressão, de perda de direitos. Não dá para se fechar aqui dentro e ficar debatendo, só na delicadeza, esses detalhes de estética.” 


O trecho acima é a fala de uma das líderes do movimento Frente de Luta por Moradia. É, como se vê, uma fala estranha para uma reunião de famílias que lutam para ter um lugar em que possam viver. Na maior cidade de um dos maiores países do mundo, é como se todos fossem refugiados, inclusive os brasileiros, até as pessoas naturais daquela cidade. Os prédios abandonados há décadas, como sabemos, devem permanecer abandonados e não servir à função social que a lei preconiza. 

O resultado da narrativa nesta obra é estranho. Eu não consegui enquadrá-la em outro gênero senão o da Literatura Política, apesar das subtramas - romance, com cartas; relatos de experiências do narrador/autor; comentário sobre a narrativa; espécie de diário escrito em retrospectiva; reunião de contos-depoimentos alheios; análise política. 

Essa tão estranha mistura não escapa ao pai do narrador que, quando este vai lhe dizer que será pai, o novo avô diz:

 - “Que notícia boa, Julián. Obrigado por me dizer.” 

E o filho responde:

- “Obrigado a você, pai. Mas aqui você me chama de Sebastián.” 


Eu li A Resistência, então estava com muita expectativa em relação a este livro - A Ocupação - , principalmente porque o tema das ocupações é relevante e atual. Mas o livro me parece conter dois livros diferentes que conversam brevemente e que, portanto, deveriam estar em obras distintas. 

A história pessoal do narrador-protagonista e de suas relações familiares ficou distante, dos termos sociais e econômicos, da história da ocupação no centro de São Paulo - o autor não consegue fazer aquilo que tornou A Resistência um livro de excelência. E embora Fuks escreva muito bem e envolva o leitor mesmo quando a trama não é boa, foi inevitável terminar a leitura com uma sensação de frustração. Preferia que ele tivesse dedicado o livro apenas à questão das ocupações e tivesse conseguido desenvolver melhor a história dessas tantas pessoas que parecem invisíveis em nosso dia a dia. 

Através de uma narrativa forte e bela, o autor leva-nos à dor do outro e à reflexão sobre questões fundamentais sobre cidadania.

Eu sei que a literatura precisa inquietar! E, se não faz isso, não cumpre o seu papel primordial. As coisas precisam - todas elas - ser incomodadas, no sentido de ser instigadas. Apesar de ser favorável ao texto de Julián Fuks, esta é uma obra que opera em vibração muito mais branda que gostaria ou poderia. Não é como se no livro anterior o escritor estivesse interessado em resistir de forma enérgica, ou que essa ação direta seja necessária, mas há aqui uma certa falência da afamada autoficção. É o olhar para dentro, o investigar a si, o fabular da própria matéria, o caminho mais fortuito de se pensar uma ocupação de refugiados. 

Um dos capítulos mais impactantes é quando Sebastián lê algumas histórias escritas pelo refugiado sírio, Najati, e, numa delas, há basicamente uma orientação de como comprar geladeiras naquele país destruído. Se quiser uma nova, o comprador deve ir às ruas comerciais que ainda existirem. Mas, se a grana não der, há todo um mercado de usados e, lá, a vantagem é que a geladeira, ou outros utensílios, já virá com “objetos de decoração, álbuns de família tão convenientes que já trazem as fotos de casais e filhos”. Não tive dúvidas, após ler esse capítulo que deveria parar e ler o restante do livro um outro dia.

Nos capítulos, há espaço para tudo: a luta de um casal jovem da classe média que quer engravidar; o ensaio de uma despedida de um pai que agoniza; até as questões dos emigrantes, dos refugiados peruanos, haitianos - além do sírio (Najati). É inclusive a pequena participação da personagem Ginia que pede um tipo de compromisso ao escritor: - “Ponha algo mais que a dor, algo mais que a desgraça, se quiser escrever qualquer coisa que valha a pena.” Ginia se incomoda com o interesse permanente pelo terremoto que destruiu seu país (Haiti) e pede que não esqueçam a história de liberdade daquele povo.

Mas, a literatura não pode ser só de dor porque nós não somos apenas a dor que nos habita. Nós somos também a decisão de continuar e, se continuamos, ocupamos um espaço em disputa: a ocupação – que, claro, no livro, tem sua dezena de acepções desdobradas: 


#Ocupar - a vida que ensaia abrir caminho num mundo pelo avesso e constituir-se em SIM, quando tudo parece dizer NÃO; 

#Ocupar - tomar o espaço abandonado pelo capital e pelas autoridades para servir novamente às pessoas;

#Ocupar - dar sentido ao corpo em ruínas, mesmo que seja apenas permitindo que ele se embriague um pouco mais;

#Ocupar - fazer parte de algo maior, que está fora de si, e, assim, ocupar-se por dentro: uma literatura do compromisso.


Um ponto me parece importante neste livro: A Ocupação é um poético elogio às mulheres! A Ocupação é a resistência (nome do livro anterior do autor) e, neste livro, nesta literatura, ela é liderada por mulheres, por mulheres que orientam o caminho da luta, como Preta, uma das lideranças dos sem-teto que está presa "porque tem esse nome,  tem a vasta cabeleira ...” , ou como a Fê, que não se abstém de tentar ser mais – mesmo quando isso contradiga o que, em outro momento, pensou ser suficiente.


 “Acho que queria multiplicar os sentimentos, disse enfim, as alegrias e os prazeres, as dores e as frustrações, queria ampliar como pudesse os sentidos da vida, você me entende?" - Fê, livro A Ocupação


O livro é assumidamente político! A Ocupação é um hino à força dos desapossados e à urgência da luta, mas nunca um panfleto ou um manifesto. Através dele, vemos o Brasil devastado de hoje.


Ficção e T. Sociais | 136 Páginas|  Editora Cia Das Letras*

A Ocupação

Julián Fuks

Ano 2019




* Cia Das Letras, abreviação para Companhia Das Letras.




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