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[RESENHA] Rua De Dentro

Marcelo Moutinho mostra, nos treze contos desta obra, a verdadeira linguagem que define a cidade do Rio de Janeiro.

Daí ele se desviar dos clichês da cidade maravilhosa para privilegiar os espaços menos glamourizados que a constituem, detendo-se nas agruras, complexidades e delícias do cotidiano de seus habitantes. As experiências mais corriqueiras são, nesse sentido, convertidas em pequenos assombros e epifanias, graças a um olhar incisivo que não prescinde da força dos afetos. Tudo com densidade e leveza ao mesmo tempo.A expressão do título, Rua De Dentro, traz uma bem-vinda dubiedade.

Rua de dentro é aquela que, na fala popular, não é a principal (“Vai pela principal? Não, vou pela rua de dentro”). Os personagens são igualmente típicos das “ruas de dentro”: aqueles que não costumam estar sob os holofotes, nos espaços principais da cidade. Mas a expressão tem ainda um segundo sentido, ao evocar também as ruas que trazemos dentro de nós. Ou: como a experiência na vida coletiva, da rua, reverbera em nosso interior, nossas ruas íntimas.

30/03/2020


Os contos de Rua De Dentro, novo livro de Marcelo Moutinho, são como os pedaços de cerâmica de diferentes cores e tamanhos do piso desenhado na capa: fragmentos que, quando postos em conjunto, formam uma unidade de base sólida. A obra,que foi lançada em fevereiro deste ano, pela editora Record reúne narrativas - algumas muito curtas e outras mais longas - protagonizadas por sujeitos periféricos da sociedade brasileira, partindo de temas densos mas retratando-os com leveza e bom-humor.



O livro de contos, narra fragmentos da vida cotidiana



O cenário das 13 histórias do livro são as ruas do Rio de Janeiro, mas poderiam facilmente ser as de São Paulo, Recife ou de qualquer outra grande cidade brasileira. Os dilemas, as alegrias, os amores e desamores das personagens de Rua de Dentro são os mesmos com os quais nos deparamos ao longa da vida e que nos unem enquanto sujeitos. Marcelo Moutinho conseguiu captar pequenos momentos do dia a dia e aprofundar esses sentimentos em forma de textos.

"Se ele ganhar, vai ficar bom pra todo mundo, repetiu o seu Botelho. Já votei no vermelho, no amarelo, no azul. Ia ficar bom pra todo mundo, sempre ia”
- trecho do Conto Militante.


Pessoas de classes sociais mais desfavorecidas, LGBTs e mães compõem a maioria dos textos, contados sem a pretensão de seguir as estruturas tradicionais do Conto. 

A literatura do jornalista e escritor carioca traz continuamente tentativas de se libertar de certas amarras líricas. No conto Comida a Quilo, por exemplo, a única forma de pontuação que o leitor irá encontrar nas cinco páginas do conto é a vírgula: Eu queria emular mesmo esse ambiente do restaurante, que é esse lugar do feijão com sushi no mesmo prato, meio caótico e onde tudo acontece sem tempo para o descanso para os funcionários”, conta. 



O ato de colocar-se no lugar do outro às vezes até incomoda em Rua De Dentro, tirando-nos de um lugar de conforto.



O próprio título é uma brincadeira com esse fio condutor que une todos os contos, uma rua de dentro, da perspectiva da cidade que está dentro da gente e das pessoas que estão dentro dela. Mas a dimensão política está sempre presente, latente nas entrelinhas das figuras inventadas por Marcelo. 

Para além das tensões sociais, alguns contos são lembranças de infância, uma valorização poética à memória através de momentos banais como uma ida ao dentista, como em Fada Do Dente, a primeira dormida fora de casa, no lindo Conto Memória da Chuva, ou o fim de um relacionamento que culmina na casa do casal invadida, em Ocorrência.

Interessado em pesquisar a condição humana, as histórias passeiam por temas vulgares como o amor, as relações sociais, a solidão, os afetos, a perda, as tensões sociais e a morte.




Rua de Dentro descreve a geografia humana de uma cidade


Não espere os cartões postais mais conhecidos do país, os grandes acontecimentos e nem tampouco experimentalismos formais. A escrita de Moutinho é traçada artesanalmente nos detalhes, com uma beleza lírica sem pressa em se revelar. É transitando entre a poesia e a aspereza de ruas e esquinas ordinárias que formam o cenário urbano do subúrbio carioca. E é nesse cenário que o autor encontra a sua matéria-prima; homens e mulheres periféricos, que vivem à margem, e amam e sonham e se desiludem, como qualquer um. São pequenos encontros em meio a uma série de desencontros e a constatação de que "a felicidade sempre teima por acabar”.


Ao descrever pequenos fragmentos do cotidiano, por vezes, um mero instante, Moutinho trata em suas narrativas breves de pessoas e famílias, mas não a tradicional família brasileira. Há também casais separados, amores perdidos, transexuais, lésbicas e gays que vivem à sombra, temerosos de que seus desejos mais íntimos sejam descobertos. O autor nem sempre revela a identidade de suas personagens. 

Ao som de Maria Bethânia e nas noites abafadas do bairro, Moutinho vai pouco a pouco apresentando as transformações do corpo, os códigos das ruas e as constantes humilhações de uma parcela da população que, como reflete a narradora: “está invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados.”

Purpurina, que abre o livro, é sobre a vida de uma travesti, desde a sua gênese, ainda muito jovem, até a maneira de se colocar diante do mundo ativamente, tendo que lidar com o preconceito familiar, culminando no desfecho simbólico, quando ela, de forma emblemática, se reaproxima de quem a recriminou. o conto ambientado em Oswaldo Cruz é retratado pelos olhos de Camile, uma jovem trans, que se divide entre a prostituição e a faculdade de Direito, a vida das travestis da Zona Norte. 

Na sequência, em Um Dia Qualquer, o escritor conduz o leitor a um passeio quase cinematográfico por logradouros típicos da paisagem urbana carioca. É a rotina alterada de um rapaz indo resolver a certidão de óbito da mãe. Sem choro, nem a aparente tristeza que este fato poderia causar. Apenas seguindo o curso natural da vida.

Em outras narrativas, o leitor ainda se depara com a amizade entre dois meninos, que, morando na mesma cidade, mas vivem em mundos e geografias desconectadas. Memória Da Chuva apresenta a divisão de classes. É incrível a história da amizade entre dois jovens de camadas sociais diferentes e as dúvidas dos pais do menino classe média alta em deixar o filho ir para o aniversário do amigo, morador de um dos vários morros que circundam a cidade. O endereço dele, por exemplo, mostra como esse abismo não é pura ficção, pois não está nem na localização do Google Maps.

O campo visual do aplicativo termina próximo ao limite do asfalto. Esse conto revela um preconceito entranhado, estrutural, mesmo com a (falsa) ideia do politicamente correto. Enquanto a preocupação dos pais é com a segurança do filho, ou a suposta falta dela, o menino nutre outro tipo de insegurança, que não tem nada a ver com o preconceito dos pais. Esse é um dos melhores contos do livro. E o meu favorito!

Militante fala sobre a mulher que trabalha na campanha política distribuindo santinhos e balançando bandeiras dos candidatos, não por ideologia, mas para garantir um trocado no final da campanha.

-  “Deus acima de todos. A verdade é que não costumo olhar para a bandeira, muito menos ler o que está escrito nela. Já agitei bandeira vermelha, amarela, azul, a de hoje é verde. Não tô nem aí. Essas palavras bonitas, de dicionário, são só palavras bonitas. Honestidade, justiça, honradez. Na bandeira do Brasil tem a frase ordem e progresso. Cadê? Palavra não paga fatura”, diz.

 A militante sem apego ideológico leva a bandeira de candidatos eleitorais pelas ruas da cidade, apenas na esperança de conseguir pagar as contas do mês.

No conto Ocorrência, um furto no apartamento e a cena guardada nas histórias das personagens que estão se separando. Retrata a violência cotidiana, tratada como mais um caso corriqueiro.

Uma consulta ao dentista, que se transforma em suplício para a criança com medo da extração do dente, é o mote do Conto Fada Do Dente.

Em Comida a Quilo, Moutinho faz experimentação a partir da conversa entre funcionários de um supermercado, só com uso de vírgulas. E uma senhora maltrapilha, alvo de comentários mordazes, que almoça invariavelmente no mesmo restaurante a quilo.

No conto Oxê, a relação homoafetiva entre o jogador da seleção brasileira de futebol e um segurança dá a tônica do enfrentamento que ele precisam lidar para não se tornarem relegados, e estigmatizados, pela descriminação. O cenário é o jogo da Seleção Brasileira durante a histórica derrota para a Alemanha na Copa do Brasil. No campo, o zagueiro Betão é xingado pela torcida atônita com a goleada. Na arquibancada, um dos seguranças da partida vive um dilema: Proibido de se voltar para o campo para assim manter a atenção nos torcedores mais aviltados, o vigilante, que vive um caso amoroso secreto com o jogador de futebol, enfrenta sozinho toda a sua angústia.

O livro traz também a história do relacionamento entre o ex-casal que compartilha a guarda da filha de forma amistosa, no Conto Cheiro.

Tem também a prosaica conversa entre o taxista e o passageiro sobre amores e desafetos. E os caminhos tortos que ligam os dois desconhecidos no texto. A corrida de táxi que subitamente evoca memórias do passado - Endless love.

Há ainda uma visita um tanto constrangedora do ex-marido a sua ex-mulher, que convivem como “dois adultos civilizados”, um exemplo a ser seguido no Conto Nota Dez.

Assim como outros, explora a dinâmica de casais conflituosos.E, esbarrando na história verdadeira apenas por tempo suficiente de nos mostrar o que de fato está em jogo lemos um dos contos mais belos do livro - Retrós e Linhas.

O livro encerra com a violência urbana mais feroz do Rio de Janeiro, cobrando o seu preço dos mais pobres, no emocionante Conto Vanessa, que termina no meio da frase de forma abrupta, assim como um tiro à queima-roupa.

Ao narrar o cotidiano desses personagens extremamente comuns, o autor nos envolve numa história que não parece ter importância nenhuma a não ser para quem as vive. As chances de que nada de notável tenha acontecido são grandes. Mas talvez exista algo ali, por trás que você não enxerga, ou que está tão acostumado a ver que não percebe a significância.

Além do gênero literário, outro padrão que reúne essas breves histórias independentes é o fato do escritor optar por, em muitas delas, não colocar um ponto final deixando as narrativas em aberto, para serem preenchidas ao gosto do leitor.

A linguagem direta, simples e sem artificialidades que compõe os contos do livro, mostra que a reflexão maior do ser humano não é “quem somos, de onde viemos ou para onde vamos?”. Mas em entender que os personagens anônimos das cidades são aqueles que, como diz um dos narradores, estão invariavelmente na borda -  "Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados. Da alegria, talvez."


OS CONTOS:

1 - Purpurina
2 - Um Dia Qualquer
3 - Memória Da Chuva
4 - Militante
5 - Ocorrência
6 - Fada Do Dente
7 - Comida a quilo
8 - Oxê
9 - Cheiro
10 - Endless Love
11 - Nota Dez
12 - Retrós e Linhas 
13 - Vanessa



A narrativa é veloz e alheia a qualquer excesso. O autor fez um ótimo trabalho de caracterização de seus protagonistas e dos locais: em poucas linhas chegamos no pequeno universo privado, na intimidade das pessoas...

Os treze contos de Rua de Dentro dão continuidade ao estilo e aos temas que o autor vinha explorando no seu livro anterior, Ferrugem (Record, 2016 – vencedor do Prêmio Clarice Lispector/Biblioteca Nacional de 2017), criando histórias do cotidiano de um Rio de Janeiro alheias a tudo pelo que a cidade é conhecida. Os personagens de Moutinho são gente anônima, com a qual se cruza todo dia, mas que fazem parte dessa metrópole, por mais que não percebam ou sejam percebidas.




Conto| 168 Páginas|  Editora Record

Rua De Dentro

Marcelo Moutinho

Ano 2020






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